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Estou lendo um livro chamado "Um Ano Bíblico", do jornalista e editor da revista Esquire, A.J. Jacobs, que tornou-se um best-seller. Jacobs resolveu, baseado na experiência de um tio considerado por sua família um homem excêntrico, que viveria um ano exatamente como manda a Bíblia. "Até aí, sem problemas", você pode pensar. "Quantos crentes não fazem o mesmo?" A diferença é que Jacobs - que se declara agnóstico - decidiu não fazer concessões, não ser seletivo ao cumprir os mandamentos bíblicos. Assim, teve que parar de fazer a barba, usar roupas que não contivessem mistura de fibras, levar um banquinho para todos os lugares (para não acabar sentando em um lugar onde uma mulher menstruada houvesse sentado), e até pastorear ovelhas.
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Ainda não estou nem na metade do livro (o autor está no octagésimo dia de sua missão), mas já dá para perceber que as principais dificuldades não estão nessas tarefas mais desconcertantes. Apesar de algumas delas serem hoje consideradas socialmente reprováveis, ou até criminosas (a Bíblia ordena, em alguns de seus versículos, que se sacrifique bois e cordeiros), o que é particularmente difícil de cumprir são as pequenas mudanças de comportamento. Não falar mal dos outros, não fazer imagens, repreender as crianças com uma vara de marmelo - Jacobs tem um filho de dois anos, mais ou menos, e não consegue levantar a mão para ele sem se sentir um tirano -, guardar os sábados (o que significa não fazer absolutamente nada que seja considerado esforço), fazer orações diariamente (imagine o quanto isso é difícil para alguém que não acredita em Deus), entre outras coisas.
Perguntado por seu avô sobre quais regras eram as mais absurdas, Jacobs respondeu que a pior que havia lido até então era um mandamento do Levítico, livro do Antigo Testamento quase inteiramente formado de regras, que dizia que se um homem se metesse numa briga com outro, e sua esposa de intrometesse e, inadvertidamente, tocasse as partes íntimas do outro homem (?), ele deveria cortar-lhe a mão sem demonstrar por ela piedade. Este é apenas um dos muitos pontos (como no caso da mistura de fibras da roupa) em que a Bíblia é estranhamente específica, e não dá qualquer explicação para exigir tais coisas.

Um dos objetivos de Jacobs é mostrar o quanto o legalismo leva ao que ele chama de "idiotice correta", ou seja, que tem gente que se concentra mais em seguir regras do que em fazer as coisas certas. Com o tempo, ele passa a realmente buscar uma elevação moral, mas isso é consequência de sua dedicação. Seu livro acaba mostrando, também, que as pessoas que dizem seguir o livro cristão e vivem com o dedo apontado para a cara dos outros, vomitando julgamentos, seguem apenas o que lhes convêm, dentro da imensa lista de ordens espalhadas pela Bíblia. É um pouco cômodo, não é? Lendo este livro, lembrei dos discursos de líderes cristãos (independente da Igreja que seguem), e vi o quanto eles usam as palavras bíblicas de maneiras diferentes, sempre convenientes ao seu modo de pensar.
É impossivel, para mim, não analisar as incoerências. Exemplo: Paulo, em um de seus livros, diz que os homens devem manter os cabelos sempre curtos. Por quê? Porque sim. Não há explicações. Mas aí, lembro-me da figura clássica de Jesus (é óbvio que se trata da imagem formulada por europeus durante o Renascimento, mas em todo caso, é muito parecida com as formas encontradas no Santo Sudário), na qual ele é retratado com cabelos compridos. E a Bíblia está cheia de regras sem sentido e contraditórias, o que leva a uma conclusão: ela foi escrita por pessoas que viveram em diferentes épocas, e de diferentes comunidades. Na época de Paulo - que viveu depois da morte de Jesus - provavelmente os cabelos compridos fossem coisa de homens afeminados, comportamento reprovado pela Bíblia. Daí a ordem para que se cortasse os cabelos.
[Sobre o homossexualismo, inclusive, vale lembrar que sua primeira menção, condenatória, aparece no episódio da adoração ao bezerro de ouro, quando Moisés está no alto do Monte Sinai para receber os Dez Mandamentos. Em uma passagem, é dito que as pessoas se relacionavam até com outros do mesmo sexo, e isso é mostrado como um absurdo. Já Levítico 18,22 (Versão Nova Internacional), diz: “Não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher: é repugnante”. Ou seja, é claramente a visão de mundo praticada pelos hebreus na época em que o texto foi escrito. Os autores não aprovavam a união entre pessoas do mesmo sexo, e colocaram isso na Bíblia, pois assim, sua opinião seria inquestionável. Ou alguém realmente acha que Deus, que nos conferiu o livre-arbítrio, perderia Seu tempo com isso?]
Continuarei a escrever sobre "Um Ano Bíblico" nos próximos posts. É um livro muito bem-humorado, que trata de forma original sobre um assunto curioso e interessante.